quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Fé x Obras

INTRODUÇÃO



Existem muitos temas controversos no mundo cristão, as diversas confissões têm respostas diferentes para mesmas passagens da Bíblia Sagrada, o que contradiz os ensinamentos de Cristo:

[...] Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja. Todavia, são numerosas as Comunhões cristãs que se apresentam aos homens como a verdadeira herança de Jesus Cristo. Todos, na verdade, se professam discípulos do Senhor, mas têm pareceres diversos e caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse dividido. Esta divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura. (Unitatis Redintegratio – Concílio Vaticano II).



Conforme professam as diversas confissões, a Sagrada Escritura não pode ter duplas interpretações e esta divisão somente corrobora com os argumentos não cristãos e causam escândalo, nos tornando divididos, facilitando o trabalho do inimigo, do acusador, do diabo.

[...] Nisto se manifestou a caridade de Deus para conosco, em que o Filho unigênito de Deus foi enviado ao mundo pelo Pai a fim de que, feito homem, desse nova vida pela Redenção a todo o gênero humano e o unificasse. Antes de se imolar no altar da cruz como hóstia imaculada, rogou ao Pai pelos que crêem, dizendo: «Para que todos sejam um, como tu, Pai, em mim e eu em ti; para que sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste» (Jo. 17,21). [...]. (Unitatis Redintegratio – Concílio Vaticano II).



O tema a ser tratado neste artigo apesar de estar bem fundamentado nas Sagradas Escrituras é alvo de intensos debates entre as diversas confissões.

Trata-se da Fé e das Obras.

Antes de começar, para a orientação do leitor, de como se dará este estudo, forneço uma sentença dada por São Tiago, inspirado pelo Espírito Santo:

Assim também a fé, se não tiver obras está morta. (São Tiago 2,17)


Neste versículo está alicerçada a interpretação correta da doutrina da Salvação.

O catecismo católico define a graça como sendo o “favor, o socorro gratuito que Deus nos dá para responder a seu convite: tomar-nos filhos de Deus, filhos adotivos participantes da natureza divina, da Vida Eterna”. (CIC, 1996)

Deus forneceu a graça a todos, quando deu seu próprio filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor, para morrer por nós na cruz. Conforme, São Paulo nos diz esta graça não vem de nós, mas é dom de Deus, isto para que nenhum homem pudesse se glorificar. A esta graça somos agregados mediante a fé em Jesus Cristo e nAquele que O ressuscitou, mas para nos mantermos nesta graça, precisamos praticar e não apenas sermos ouvintes, ou seja, precisamos ter as obras, uma vez que sem estas obras a fé está morta.

São Tomás de Aquino, em seu sermão sobre o credo, nos diz que:

[...] 1 – o primeiro bem para o cristão é a fé. Sem a fé ninguém pode ser chamado de fiel cristão. 2 - [...] pela fé realiza-se uma espécie de matrimônio entre a alma e Deus [...] 3 – [...] pela fé é iniciada em nós a vida eterna. [...] 4 – A vida presente é orientada pela fé[...] a fé ensina todos os princípios do bem viver. Ora, ela ensina que há um só Deus, que recompensa os bons e pune os maus, que existe outra vida [...].(Sermão sobre o Credo, São Tomás de Aquino)

Assim, a fé é o primeiro bem, pelo qual nós aderimos à graça santificante de Deus e nos impele às boas obras para nos mantermos aderente à graça.



Jesus Cristo



Antes de entrarmos no suposto embate entre os escritos de São Paulo e a epístola católica de São Tiago, vamos invocar a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo para vermos se em suas pregações houve menção às boas obras.

Vamos começar a argumentação com a seguinte passagem, talvez já seja suficiente para encerrarmos os embates:

Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai com seus anjos, e então recompensará a cada um segundo suas obras. (São Mateus 16,27)

Em muitas outras passagens, Jesus nos diz da necessidade das obras, contudo vou recorrer ao capítulo 10, do Evangelho de São Marcos, na qual encontramos a famosa passagem do jovem rico.

Este jovem sincero e temente a Deus pergunta a Jesus: Bom Mestre, que farei para alcançar a vida eterna?

Jesus responde: Conheces os mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe.

Ora, os mandamentos são obras que nós devemos fazer, com a nossa livre vontade. Nosso Senhor explica que estas obras são em parte responsáveis pela condução do jovem à vida eterna.

O jovem já animado revela: Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade.

Mas, Jesus quer ensinar que é preciso algo mais, é preciso excelência, então com a sua profunda caridade ensina: Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me.

Assim, se o jovem obedecer a Jesus (ter fé) e der os bens aos pobres (obra), terá um tesouro no céu. Jesus queria mostrar que estas obras necessárias à salvação, somente terão valor se você O obedecer e O seguir. Infelizmente, o jovem muito apegado aos seus bens materiais, não seguiu a Jesus.

Continuando, agora com seus discípulos que estavam sentindo-se inseguros, perguntando quem poderá salvar-se, Jesus é cabal: Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível.

Ora, esta é exatamente a ideia que devemos ter: nossa salvação vem de Deus, pois para os homens é impossível, mas para garantir a vida eterna teremos que dar mostras de nossa fé, praticando as boas obras, uma vez que a santificação é gradual.

Encerrando este pequeno estudo sobre os ensinamentos de Jesus Cristo, considerando, ainda o Evangelho segundo São Marcos, temos a seguinte passagem:

Quem crê e for batizado será salvo, mas quem não crê não será salvo. (São Marcos 16,16)


Esta é uma passagem muito interessante, no que diz respeito à questão da fé e das obras. Nosso Senhor Jesus Cristo fala-nos que a fé (crê) e as obras (neste caso o batismo) são requisitos para a salvação. Mas, podemos entender que a obra somente se tornou meritória após a crença. Por isso, na segunda parte mesmo aquele que tiver obras, mas não tiver fé, a crença, não será salvo. Então, para se salvar é preciso ter fé e obras, mas para se perder basta não ter fé.



São Paulo x São Tiago



Uma das objeções que os não cristãos têm contra nós está no presumido embate entre estes dois apóstolos, contudo este embate é falacioso, uma vez que as obras mencionadas por ambos são de natureza distintas.

São Paulo, enviado aos gentios por Jesus Cristo e confirmado pela imposição das mãos dos apóstolos São Pedro, São João e São Tiago está preocupado com a adesão dos gentios à graça e por isso não quer que os mesmos sejam obrigados a participar da Antiga Aliança, que estava vencida pelo poder mediador do sangue de Cristo, que selou a Nova. Por isso, sempre aludia àquelas obras judaizantes.

Ele entendeu desde cedo que para aquelas obras existiam novas, que tinham um caráter mais espiritual do que material, ou seja, para a circuncisão, Jesus instituiu o batismo; para os sacrifícios, Jesus instituiu a Eucaristia...

Não havia mais necessidade de submeter àquelas obras antigas.

Assim, as obras a que se refere São Paulo, quando cita que não são necessárias, são as obras da lei. Mas, ele continua a mostrar que as boas obras são necessárias à salvação:

Mas, pela tua obstinação e coração impenitente, vais acumulando ira contra ti, para o dia da cólera e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam a glória, a honra e a imortalidade; mas ira e indignação aos contumazes, rebeldes à verdade e seguidores do mal. Tribulação e angústia sobrevirão a todo aquele que pratica o mal, primeiro ao judeu e depois ao grego; mas glória, honra e paz a todo o que faz o bem, primeiro ao judeu e depois ao grego. Porque, diante de Deus, não há distinção de pessoas. Todos os que sem a lei pecaram, sem aplicação da lei perecerão; e quantos pecaram sob o regime da lei, pela lei serão julgados. Porque diante de Deus não são justos os que ouvem a lei, mas serão tidos por justos os que praticam a lei. (Romanos 2,5-13, grifos nossos)

São Paulo sabe que as boas obras cooperam para a salvação, mas somente estando nós sob a graça de Deus, mediante a fé em nosso único e suficiente salvador Jesus Cristo.

São Tiago, “irmão do Senhor” e bispo de Jerusalém, por seu turno, apesar de ser aquele apóstolo que mais se identificava com o judaísmo, em sua epístola católica nos fala das boas obras, das obras da fé, necessárias à nossa salvação, pois nos mantêm sob o poder da graça de Deus Pai. Com efeito, São Tiago não poderia ser mais claro:

Desta forma, “Vedes como o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé? Do mesmo modo Raab, a meretriz, não foi ela justificada pelas obras, por ter recebido os mensageiros e os ter feito sair por outro caminho? Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é morta". (São Tiago 2, 24-26, grifo nosso).

De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo?" (São Tiago 2,14, grifo nosso).


Podemos concluir que São Paulo nos fala que as obras são desnecessárias para o ingresso na graça de Deus, contudo São Tiago nos fala das obras que são necessárias à manutenção do homem sob a graça de Deus. Pois, Deus quando nos salva espera que passemos a fazer as obras da luz.

Portanto, não há, nem poderia haver contradição entre São Paulo e São Tiago.



Tradição Apostólica



A seguir dedicamos a atenção à Tradição Apostólica, contudo nos restringimos somente aos pais que viveram dos séculos I ao III, por estarem mais próximos dos tempos apostólicos.

Santo Inácio (35? – 110?), bispo de Antioquia, comunidade fundada por São Pedro.

Conhece-se a árvore pelos seus frutos, assim os que professam ser de Cristo serão reconhecidos pelas obras. Pois nesta hora não é de profissão de fé que se trata, mas de nos mantermos na prática da fé até ao fim. (Carta aos Efésios)

São Policarpo (69 - 155), bispo de Esmirra, discípulo de São João.

Quando puderem fazer o bem, não o posterguem, pois "a esmola livra da morte". Todos vocês estão submetidos uns aos outros tendo uma conduta justa entre os gentios, para que vocês recebam em dobro a recompensa de suas boas obras, e para que o Senhor não seja blasfemado por causa de vocês. (Carta aos Filipenses)

Estes dois pais viveram a época apostólica, tendo contato com os Apóstolos em pessoa. Alguns documentos dão conta de que Santo Inácio teria sido uma das crianças que estiveram no colo de Jesus.


Santo Irineu (130 - 202).

Porém, para que serve conhecer a verdade da Palavra se se profana o corpo e se realizam ações deploráveis? De que serve a santidade do corpo se a verdade não habita na alma? Ambas, pois, se alegram de estarem juntas; estão aliadas e lutam constantemente para levar o homem à presença de Deus. (Santo Irineu, Demonstração da Pregação Apostólica)

Esta é, meu querido amigo, a pregação da verdade e a imagem da nossa salvação: assim é o caminho da vida, que os profetas anunciaram, o que Cristo instituiu, que os apóstolos consignaram e que a Igreja transmite aos seus filhos, através de toda a terra. Deve ser custodiado com amor e com vontade decidida, para agradar a Deus com as boas obras e com um modo puro de pensar. (Demonstração da Pregação Apostólica)


Justino Mártir (100 - 165)

Aqueles, porém, que se vê que não vivem como ele ensinou, sejam declarados como não cristãos, por mais que repitam com a língua os ensinamentos de Cristo, pois ele disse que se salvariam, não os que apenas falassem, mas que também praticassem as obras. De fato, ele disse "Não todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Porque aquele que me ouve e faz o que eu digo, ouve aquele que me enviou. Muitos me dirão: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que comemos, bebemos e fizemos prodígios?’ Então eu lhes responderei: -‘Apartai-vos de mim, operadores de iniqüidade. Então haverá choro e ranger de dentes, quando os justos brilharem como o sol e os injustos forem mandados para o fogo eterno. Porque muitos virão em meu nome, vestidos por fora com peles de ovelha, mas por dentro são lobos roubadores. Por suas obras os conhecereis. Toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada ao fogo". Aqueles que não vivem conforme os ensinamentos de Cristo e são cristãos apenas de nome, nós somos os primeiros a vos pedir que sejam castigados.


Em todos estes testemunhos, vemos que a fé anda lado a lado com as obras, conforme os ensinamentos do Novo Testamento.



São Tomás de Aquino


Falaremos um pouco sobre São Tomás de Aquino, um dos grandes gênios da humanidade, uma vez que ele é uma das bases da teologia católica atual, sendo o segundo teólogo mais citado pelo Catecismo Católico.

São Tomás de Aquino nasceu em 1225, em Roccasecca, e morreu em 1274, em Fossanova, ambas na Itália.

Vamos analisar de maneira sucinta, algumas afirmações de São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, que reconhecidamente é a base para a doutrina católica em diversas áreas. Devemos notar que a Suma Teológica foi escrita no ano de 1273, muito anterior ao Cisma do Ocidente.

A graça é imprescindível para a salvação, sendo o efeito do amor (ágape) de Deus.

Romanos 3,24: Foram justificados gratuitamente por sua graça. O homem que peca ofende a Deus. Mas para que uma ofensa seja perdoada é necessário que o ânimo do ofendido se apazigue com respeito à culpa. E assim dizemos que nossos pecados são perdoados quando Deus se apazigua de nós. Pois bem, esta paz consiste no amor que Deus tem por nós. E este amor, em quanto ato divino, é eterno e imutável; mas enquanto o efeito que produz em nós é susceptível de interrupção, posto que às vezes o perdemos e logo o recobramos. O efeito que o amor divino produz em nós, e que o pecado destrói, é a graça, que nos faz dignos da vida eterna, cujas portas nos fecha o pecado mortal. Em consequência, é impossível entender a remissão da culpa sem a infusão da graça. (questão 113, artigo 2)


A graça não nos é dada por nossos méritos

[...] É, pois, manifesto que ninguém pode merecer por si próprio a primeira graça. (questão 114, artigo 5)

Comparando a justificação do pecador com o movimento de um objeto qualquer, São Tomás enumera quatro elementos necessários para a salvação: a infusão da graça; movimento para Deus; movimento contra o pecado e; a remissão do pecado. Assim, a nossa justificação somente estará consumada quando estivermos sem pecado.

Quatro são os elementos que se enumeram como necessários para a justificação do pecador, a saber: a infusão da graça, o movimento do livre arbítrio para Deus pela fé, o movimento do mesmo livre arbítrio contra o pecado e a remissão da culpa. A razão é que [...] a justificação é um movimento no qual a alma é movida por Deus do estado de culpa ao estado de justiça. Mas, em qualquer movimento em que um sujeito se move por um impulso exterior se requer três elementos: primeiro, o impulso motor; segundo, o movimento do móvel; terceiro, a consumação do movimento, ou seja, a chegada ao término. Em nosso caso, o impulso divino consiste na infusão da graça; o movimento do livre arbítrio, que é duplo, consiste em que se distancie do ponto de partida e se aproxima da chegada; a consumação, isto é, o acesso ao término de este movimento, se encontra na remição da culpa, pois com isto se consuma a justificação. (questão 113, artigo 6)

O movimento do livre arbítrio contra o pecado se dá pelas boas obras, o que está coerente com os escritos de São Paulo e de São Tiago. Para a adesão à graça, necessita-se da fé, não sendo necessárias obras, contudo para a manutenção e consumação da fé necessitamos das chamadas obras meritórias.

[...] A natureza do homem pode ser considerada em um duplo estado: o da integridade, que é o estado dos nosso primeiro pai (Adão) antes do pecado; e o de corrupção, que é o nosso depois do pecado original. Pois bem, em ambos estados a natureza humana necessita para fazer ou querer o bem, de qualquer ordem que seja do auxílio de Deus como primeiro motor. [...] Em ambos os estados necessita o homem um auxílio divino que lhe impulsione o bem obrar. (questão 109, artigo 2)


E nem podemos praticar todo o bem para o qual nós fomos criados, nem nos levantar do estado de pecado e nem evitar o pecado se não formos guiados por Deus.


Disse o apóstolo em Gálatas 2,21: Se a justificação se pode conseguir pela lei, Cristo morreu em vão, ou seja, sem necessidade. [...] se o homem tem uma natureza que por si mesma pode alcançar a justiça, também Cristo morreu em vão. Mas, esta conclusão é inadmissível. Logo, o homem não pode se justificar por si mesmo, ou seja, não pode sair do estado de culpa para o estado de justiça. [...] O homem não pode de modo algum levantar-se do pecado sem o auxílio da graça. (questão 109, artigo 7)

[...] O homem, com seus recursos naturais, não pode produzir obras meritórias para a vida eterna. Para isto necessita uma força superior, que é a força da graça. Sem a graça, pois, não pode o homem merecer a vida eterna, ainda que possa realizar ações que conduzam a algum bem, como trabalhar no campo, beber, comer, cultivar a amizade e coisas semelhantes [...] (questão 109, artigo 5)

[...] No estado de natureza corrompida, para evitar o pecado, o homem necessita da graça, que venha a restaurar a natureza. Contudo esta restauração, durante a vida presente, se realiza sobretudo na mente, sem que o apetite carnal seja retificado por completo. Assim, São Paulo, assumindo a representação do homem reparado, diz em Romanos 7,25: Eu mesmo, com o espírito, sirvo a lei de Deus, mas com a carne, a lei do pecado. Deste modo, neste estado, o homem pode evitar o pecado mortal, que reside na razão; mas não pode evitar todo pecado venial, devido a corrupção do apetite inferior da sensualidade, cujos movimentos podem ser reprimidos pela razão uma a um, mas não todos eles [...] a razão não pode se manter sempre vigilante para mantermos afastados de todo pecado. (questão 109, artigo 8)

É importante notar que São Tomás dava muito valor ao aspecto mental da santificação. Ele sabe que a infusão da graça nos permite mudar a nossa mente para evitarmos o pecado, contudo sabe que nosso espírito, nossa razão está presa ao nosso corpo que é corruptível, sendo nesta vida impossível para qualquer homem estar livre completamente do erro, somente na beatitude, na vida eterna é que estaremos completamente justificados. Enquanto estivermos na Terra precisamos da graça para nos manter livre de cair no pecado.

Desta forma, São Tomás, e com isso a doutrina católica, é bem claro sobre a necessidade da Graça, sem a qual não podemos ser justificados, contudo nos mostra as necessidades das obras, que somente são meritórias, após a adesão à graça.



Figura: A Escola da Graça



Para ilustrar como se dá a salvação e qual o papel da graça, da fé e das obras, eu proponho uma ilustração: A Escola da Graça.


A Escola da Graça está disponível a todos, foi idealizada e construída por Deus Javé. Como criador, Javé quer que todos entrem para esta escola. Por isso, Ele enviou seu filho Jesus Cristo em pessoa para fazer o marketing da escola. E esse mesmo Jesus é também professor.

Para entrar nesta escola, há dois requisitos, a fé em Jesus Cristo e o batismo. A fé é a inscrição na escola e o batismo, a matrícula, logo sem a matrícula é impossível garantir que o aluno tenha sido admitido.

Da mesma forma que a entrada na escola é facultativa a cada aluno, também a permanência deve ser facultada. O aluno pode sair da escola a qualquer momento e a qualquer momento pode retornar. Javé nunca expulsa um aluno, o aluno que por sua vontade livre pede para sair.

Os alunos que entram nesta escola, logo percebem que Javé instituiu um diretor muito exigente e muito atuante, pois também é professor, o Espírito Santo. Para cumprir tudo o que Javé decidiu sobre a escola, o Espírito Santo escreveu um impressionante livro didático, as Sagradas Escrituras, que é a Palavra de Deus escrita.

A escola da Graça também tem outro nome, Igreja, ou seja, todos os que estão na Graça estão também na Igreja, sendo impossível fora da Igreja, os alunos se formarem. Como toda escola, o diretor nomeia alguns monitores, alunos que estão em um grau avançado, para prestarem serviço são os Bispos, os Presbíteros e os Diáconos.

Os alunos podem falar diretamente com o instrutor e com o diretor através da oração, que é uma forma de diálogo, já que a escola possui mensageiros para levar diretamente ao diretor e aos professores as mensagens, são os anjos e aqueles alunos que já se formaram, os santos. Estes mensageiros também trazem as mensagens do criador e dos professores.

Nesta escola há uma mulher que foi a melhor aluna de todos os tempos e que por isso recebeu o título “Cheia de Graça”. Ela foi instruída diretamente por Javé e já nasceu sabendo tudo que poderia saber sobre a escola. Por isso, aceitou receber a incumbência de ser esposa do diretor e mãe do professor Jesus Cristo, uma vez que acreditou em tudo que Javé havia lhe ensinado sobre a mensagem do seu Cristo.

O aprendizado nesta escola é lento e gradual, mas perfeito e contínuo. Os alunos para passarem de ano, e chegarem cada vez mais próximos da formatura, precisam passar por provas e realizar trabalhos. Estas provas são as tribulações e os trabalhos que compõem as notas são as boas obras.

As aulas podem ser individuas ou coletivas (missa, culto, reunião, assembleia). Nas aulas coletivas, estão presentes o criador, seu filho e o diretor ministrando, embora visivelmente quem presidida seja um dos monitores. Nas aulas coletivas, somos instruídos com leituras do livro didático e a hora do recreio, o ponto máximo das aulas coletivas, comemos e bebemos o alimento que nos fortalece para as provas e para os trabalhos, a eucaristia, em que o pão e o vinho são transubstanciados no professor Jesus.

No final deste aprendizado, o próprio criador Javé vem julgar aluno por aluno e mostra que tem um livro anotado com cada mérito e cada demérito dos estudantes. Ele é tão zeloso e preocupado que julga também aqueles que não quiseram entrar na escola ou que saíram dela. Mas, neste momento o filho do criador, Jesus Cristo, se reveste da toga de advogado para nos ajudar. Neste livro, estão as notas de todas as provas e de todos os trabalhos que os alunos fizeram e por elas, os alunos serão julgados.

Assim, ele distribui o diploma para cada um:

• Aqueles que não aderiram à escola ou saíram dela, devem ir para uma escola inferior, uma escola que somente possui sofrimentos e dor, a Escola Inferno, em que o aluno nunca se forma;

• Os alunos que chegaram ao fim do último ano são julgados por suas notas:

o Uns são chamados a irem de viagem para uma cidade banhada com ouro e pedras preciosas, para o convívio com o professor Jesus, a cidade de Jerusalém Celeste. Mas, não serão mais seus alunos, serão seus amigos;

o Outros apesar de terem fé no professor Cristo, tiveram nota abaixo da média, mas são alunos perseverantes, que fizeram os trabalhos, passaram pelas provas, para estes há ainda a chance da recuperação, o purgatório, mas Javé explica que eles irão também para aquela cidade, somente demorarão um pouco mais. Para apressar esta saída, o diretor permite que os estudantes em um grau inferior possam ajudar, orando e clamando pela saída dos seus amigos da recuperação.

Depois de todos formados, os alunos podem ver que na verdade o criador, o diretor e o advogado são três e iguais, contemplamos a Santíssima e Augustíssima Trindade.



Conclusão


É importante frisar que a controvérsia entre o entendimento da importância da Fé e das Obras se dá tão somente no campo teológico, uma vez que todas as confissões cristãs incentivam as boas obras, mesmo aquelas que não acreditam que elas sejam necessárias à salvação. Mas, devemos lembrar que as contendas entre os cristãos é causa de escândalo e prejudica a pregação universal e consequentemente a vinda de Jesus Cristo.

Claro é que não podemos nos erguer ou reerguer do pecado, senão pela ajuda divina, conforme as palavras de Santo Agostinho:

Mas é verdade que o homem que cai por si mesmo não pode igualmente se reerguer por si mesmo, tão espontaneamente. É porque, do céu, Deus nos estende sua mão direita, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo. Peguemos essa mão, com fé firme, esperemos sua ajuda com esperança confiante e desejemo-la com ardente caridade. (O Livre Arbítrio)

Mais ainda, somente ao aderirmos à graça, mediante a fé, adquirimos a verdadeira liberdade, somente a partir desta adesão é que nossa vontade fica realmente livre para escolher entre o pecado e a virtude:

Eis que consiste a nossa liberdade: estarmos submetidos a essa Verdade. É ela o nosso Deus mesmo, o qual nos liberta da morte, isto é, da condição de pecado. Pois a própria Verdade que se fez homem, conversando com os homens, disse àqueles que nela acreditavam: “Se permanecerdes na minha palavra sereis, em verdade, meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31.32).[...] (Santo Agostinho, O Livre Arbítrio)

É mister saber que a necessidade de obras não pode servir de argumento para arrecadação financeira, porque como São Tiago nos diz:

A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e conservar-se puro da corrupção deste mundo. (São Tiago 1,27)

Contudo, para que o mundo creia que Jesus foi enviado pelo Deus-Pai, é preciso que sejamos um, assim como Jesus é um com o Pai.

Santifico-me por eles para que também eles sejam santificados pela verdade. Não rogo somente por eles, mas também por aqueles que por sua palavra hão de crer em mim. Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim. (São João 6, 19-23)

Conforme, Santo Inácio exortou aos cristãos de Éfeso e que serve de mensagem ao mundo cristão atual:

[...] cantais em uníssono por Jesus ao Pai, a fim de que vos escute e reconheça pelas vossas boas obras, que sois membros de seu Filho.[...]

Mas também pelos demais homens, rezai sem cessar. Pois neles existe esperança de conversão, de chegarem a Deus. Permiti-lhes que se instruam junto a vós por vossas obras.

Assim, nossa união e nossas obras servem de catequese para aqueles que não creem.

Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus. (São Mateus 5,16)

Muitos cristãos ao serem perguntados por que acham que gozarão da presença de Deus, respondem simplesmente que por serem boas pessoas, por fazerem caridade, por praticarem o bem enfim, conforme o jovem rico. Entretanto, somente irão para o céu aqueles que têm fé em Jesus Cristo, O confessam e que pratiquem as boas obras:

[...] Só o fato de nos encontrarmos em Cristo Jesus nos garantirá entrada para a vida verdadeira [...] (Santo Inácio, Carta aos Efésios)

O discípulo de Cristo não deve apenas guardar a fé e nela viver, mas também professá-la, testemunhá-la com firmeza e difundi-la: "Todos devem estar prontos a confessar Cristo perante os homens e segui-lo no caminho da Cruz, entre perseguições que nunca faltam à Igreja. O serviço e o testemunho da fé são requisitos da salvação: "Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens também eu me declararei por ele diante de meu Pai que está nos céus. Aquele, porém, que me renegar diante dos homens também o renegarei diante de meu Pai que está nos céus" (Mt 10,32-33). (Catecismo da Igreja Católica CIC, 1816)


Lemos nas Sagradas Escrituras que os demônios têm fé e até mesmo confessam Jesus como filho do Deus Vivo, mas aos demônios falta o que todo crente possui, as boas obras.


Não pode haver confusão: somos salvos pela graça de Deus; adquirimos esta graça mediante a fé em Jesus Cristo e; mantemos esta graça pela ação direta e permitida do Espírito Santo, que nos impele às boas obras, para que no dia do Juízo de Deus possamos ter a vida eterna.


Deste modo, para a Salvação, de nós pobres criaturas, coopera a Santíssima Trindade.

Deus sapientíssimo, onipotente, tudo sabe e tudo vê.

Dai-nos a graça de participar da Vossa Divindade e gozarmos de Vossa presença.

Quão lindo é o caminho, Jesus Cristo, Nosso Senhor, que nos leva a Ti. Oh, Deus!

E quão belo é o Espírito Santo, nosso guia e Tua força. Oh, Altíssimo!

Glórias sejam dadas ao Pai.

Ao Filho Seu também.

Igualmente ao Espírito Paráclito,

Como era no princípio, agora e sempre.

Amém.



Terminemos este estudo com o maior doutor do período Patrístico, Santo Agostinho:

Ai (na Cidade de Deus) haverá a verdadeira glória; ninguém será levado então por engano ou bajulação; as verdadeiras honras não serão recusadas àqueles que as merecem, nem concedidas aos indignos; aliás, nenhum indigno terá tal pretensão, pois que só quem é digno será admitido. Ai reinará a verdadeira paz, onde ninguém será sujeito à adversidade nem de si mesmo nem dos outros. Da virtude o próprio Deus será a recompensa, Ele que deu a virtude e prometeu a Si mesmo como a recompensa melhor e maior que possa existir “Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Levítico 26,12) [...] É também o sentido das palavras do apóstolo: “Para que Deus seja tudo em todos” (I Coríntios 15,12). Ele mesmo será o fim de nossos desejos, aquele que contemplaremos sem fim, amaremos sem saciedade, louvaremos sem cansaço. E esse dom, essa afeição, essa ocupação serão certamente como a vida eterna, comuns a todos. (A Cidade de Deus 22,30).